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Fotografia © Jon Tyson
Que a acessibilidade digital é (ou deveria ser) um princípio muito importante para os produtos e serviços digitais, dificilmente alguém contrariará. A evolução tecnológica para além de todas as transformações amplamente proclamadas pela indústria, deve representar igualmente um esforço sincero das marcas para a inclusão do mais amplo leque de pessoas, capacitando pelo caminho a sua autonomia. A acessibilidade digital representa de forma bastante pragmática tudo isto.
Contudo, ao analisarmos a realidade dos produtos e serviços digitais, sejam ele públicos ou privados, vemos que o cenário está muito longe de ser positivo. Dados do Observatório Português de Acessibilidade Web, referem que dos 2025 sítios web do setor público analisados (à data de 25 de Março de 2024), a média de pontuação atribuída, numa escala de 0 a 10 era de 7,2. A mesma fonte, refere ainda que das 115.599 páginas analisadas, só 15.085 não contém qualquer erro de acessibilidade e utilizando métodos de verificação automáticos. Ou seja, só cerca de 13% das páginas analisadas é que não contém nenhum erro que prejudique a sua utilização em termos de acessibilidade. E isto no setor público em Portugal, que nos últimos anos tem feito um esforço muito significativo para tornar os seus produtos e serviços digitais cada vez mais acessíveis.
No setor privado o cenário é ainda pior. Facilmente ao navegarmos por algumas plataformas online de marcas portuguesas, de maior ou menor visibilidade, vemos que o cumprimento das mais elementares boas práticas de acessibilidade está muito longe de ser uma realidade. Tudo isto é bastante preocupante quer seja, claro, pela perspectiva dos consumidores, ou até mesmo para o negócio das marcas. No final do dia, o que isto quer dizer, é que uma fatia significativa dos consumidores terá muitas dificuldades ou até mesmo não conseguirá de todo, utilizar muitas destas plataformas. Ninguém ganha com isto.
A bem da verdade, se procuramos uma mudança real neste paradigma, várias coisas têm que mudar. Uma delas seria o quadro legislativo que estipula os requisitos mínimos de acessibilidade digital para os produtos e serviços digitais no setor privado. Isso já mudou. Em Dezembro de 2022 foi publicado o Decreto-Lei n.º 82/2022 que determina os requisitos de acessibilidade digital que as marcas terão que cumprir no futuro. Este decreto-lei, complementado também pela Portaria n.º 220/2023, transpõe para a legislação nacional, muito do trabalho realizado no âmbito europeu pelo European Accessibility Act e que teve como resultado legislativo a Diretiva (UE) 2019/882.
Antes de começar
Antes de olhar para alguns pontos em concreto da lei, é importante perceber que este tem que ser um trabalho de equipa na empresa. A conformidade das plataformas da empresa com a lei nacional de acessibilidade digital é uma tarefa que precisará do esforço de todos os departamentos, inclusive dos departamentos ligados à dimensão legal e jurídica na empresa. É importante antes de começar o trabalho técnico de adaptação ou reconversão das plataformas, que exista na empresa uma leitura e compreensão partilhada da lei e tudo aquilo que ela implicará transformar.
Ao que se aplica a lei?
O decreto-lei aplica-se a produtos e serviços. Quer isto dizer, que é importante perceber este normativo nestas duas dimensões de aplicação, ou seja, para equipamentos físicos e aplicações que possam ser utilizadas através desses equipamentos. Para cada uma destas duas dimensões o decreto-lei define de forma clara e pragmática o tipo de produtos e serviços que estão e não abrangidos por este quadro legal.
Produtos
Produtos a que se aplica o Decreto-Lei n.º 82/2022:
- Equipamentos informáticos para uso geral dos consumidores e sistemas operativos para esses equipamentos informáticos.
- Terminais de autosserviço (terminais de pagamento; caixas automáticos; máquinas de emissão de bilhetes; máquinas de registo automático; terminais de autosserviço interativos que prestam informações, excluindo terminais instalados como parte integrante de veículos, aeronaves, navios ou material circulante).
- Equipamentos terminais com capacidades informáticas interativas para uso dos consumidores, utilizados para serviços de comunicações eletrónicas.
- Equipamentos terminais com capacidades informáticas interativas para uso dos consumidores, utilizados para aceder a serviços de comunicação social audiovisual, cuja principal finalidade seja facultar o acesso a estes serviços.
- Leitores de livros eletrónicos.
Serviços
Serviços a que se aplica o Decreto-Lei n.º 82/2022:
- Serviços de comunicações eletrónicas, com exceção dos serviços de transmissão utilizados para a prestação de serviços máquina a máquina.
- Serviços que fornecem acesso a serviços de comunicação social audiovisual.
- Aos seguintes elementos de serviços de transporte aéreo, de autocarro, ferroviário, marítimo e por vias navegáveis interiores de passageiros (sítios web; serviços integrados em dispositivos móveis, incluindo aplicações móveis; bilhetes eletrónicos e serviços de bilhética eletrónica; prestação de informações sobre o serviço de transporte, incluindo informações de viagem em tempo real, sendo que, ao nível dos ecrãs de informação, apenas são abrangidos os ecrãs interativos).
- Aos terminais de autosserviços interativos dos serviços de transporte urbano e suburbano, e dos serviços de transporte regional, exceto os instalados como parte integrante de veículos, aeronaves, navios ou material circulante utilizados na prestação de qualquer parte de tais serviços de transporte de passageiros.
- Os seguintes serviços bancários e financeiros destinados aos consumidores (contratos de crédito; serviços e atividades de investimento e serviços auxiliares; serviços de pagamento; serviços associados às contas de pagamento; moeda eletrónica).
- Livros eletrónicos e programas informáticos dedicados.
- Serviços de comércio eletrónico.
A partir de quando?
Para que qualquer transformação seja realmente efetiva, é muito importante que ela aconteça de forma sustentada e com noção da realidade. Em termos de evolução do quadro legal, isto reflete que qualquer lei deve ser acompanhada por um período que possibilite às empresas criar estratégias de transição adaptadas ao seu contexto. O decreto-lei sobre acessibilidade digital prevê um período de adaptação inicial de cerca de dois anos e meio. Por outras palavras, muito daquilo que é descrito no decreto-lei só produz efeitos a partir do dia 28 de Junho de 2025. O decreto-lei pressupõe também alguns períodos de transição adicionais. Mais uma vez, antes de começar o processo de transformação é importante uma leitura cuidada da legislação e uma interpretação partilhada.
Olhando para este horizonte temporal, podemos ficar com a ideia que existe bastante tempo para esta transformação. E na verdade até existe algum. Contudo, olhando igualmente para a realidade de muitas empresas, o trabalho que está por fazer é bastante e em muitos casos muito profundo. Transformar a acessibilidade digital de muitos produtos e serviços digitais, pode em vários casos querer dizer refazer por completo soluções inteiras, algumas com um legado tecnológico de muitos anos. Visto por este prisma, talvez não seja assim tanto tempo e quanto mais cedo começar a transformação, melhor.
Quais as consequências?
O tipo de consequências que podem surgir pelo não cumprimento da legislação, são várias e podem ter muitas dimensões diferentes. Antes de mais claro está, um processo legal deste género pode dar origem a coimas de diferentes ordem de grandeza. Naturalmente conforme cada processo este pode ser um valor mais ou menos significativo. Contudo, quando falamos de consequências pelo não cumprimento da legislação de acessibilidade digital no setor, os problemas para as empresas que daqui podem advir, poderão ser bastante mais gravosos do que só o valor das coimas.
Um processo legal deste género pode ter várias consequências. A começar logo pela própria reputação da marca. Uma condenação num processo deste género atribui um rótulo negativo a qualquer marca. Na prática torna-se uma evidência pública que determinada marca, não quis saber de um determinado grupo dos seus consumidores. A acessibilidade digital beneficia a experiência de todos os utilizadores em geral, mas é absolutamente essencial para que pessoas com deficiência possam utilizar os produtos e serviços digitais. Uma marca que é condenada num processo deste género, acaba de forma indirecta a ser reconhecida como uma marca de descrimina este perfil de utilizadores, não de forma propositada mas simplesmente por desleixo. Não é uma reputação muito positiva.
Imaginar cenários em que existem processos legais por falta de cumprimento de normativos de acessibilidade digital, pode parecer um cenário demasiado catastrofista. A dada altura podemos imaginar que isto são cenários demasiados extremos ou que ninguém se está para chatear o suficiente a este ponto. A verdade é que para muitas pessoas a falta de acessibilidade dos produtos e serviços digitais não é mera curiosidade. Em muitos casos, sem isto, muitas pessoas não poderão fazer ações tão simples como pagar as suas contas, aceder a aplicação do banco, encomendar um produto entre muitas outras ações perfeitamente convencionais. E isto é bastante grave.
O histórico de processos legais relacionados com a acessibilidade digital prova que isto pode não ser um tema a descartar. Embora em Portugal este seja ainda um caminho muito no início, um pouco por todo o mundo, temos já alguns casos de estudo, que nos demonstram que este tipo de consequências podem perfeitamente existir. Por exemplo os casos nos Estados Unidos da América que envolveram marcas como a Target, Dominos, Netflix ou ainda a Universidade de Harvard e MIT. Para além destes paradigmáticos, em Espanha, mesmo aqui ao lado, recentemente temos o exemplo da Vueling que se viu envolvida num processo do género. O processo obrigou a companhia a pagar uma coisa de 90 mil euros e incluiu ainda uma proibição de durante 6 meses não poder aceder a nenhum tipo de apoio do Estado, o que neste caso tem um impacto muito considerável para a operação da companhia.
Por onde começar?
Antes de começar seja o que for é importante ler e reler com atenção a diretiva europeia, decreto-lei e portaria. Esta é uma visão simplificada deste normativo e por isso é fundamental antes de tudo, fazer uma leitura própria destes normativos, tirando as suas próprias conclusões. Posto isto, algumas das questões que poderão surgir logo de seguida andarão em torno desta ideia: “Já percebi a importância do tema e as implicações legais no futuro. Então por onde começo na minha empresa?”. A resposta a esta pergunta pode ter inúmeras perspectivas. Em quase todas as abordagens, a avaliação rigorosa do estado atual de conformidade das plataformas da empresa e a formação, serão seguramente dois tópicos que deverão fazer parte de qualquer resposta que seja.
É imprescindível que antes de fazer um plano de ação perceba concretamente em que ponto está. Por outras palavras, uma das primeiras ações a realizar será seguramente realizar uma auditoria de acessibilidade digital, com a ajuda de especialistas, em que ponto está a acessibilidade digital das principais plataformas da empresa.
Paralelamente a este trabalho, visto que a acessibilidade digital, deverá quase que obrigatoriamente ser um trabalho de todos os departamentos, poderá igualmente ser importante criar oportunidades de formação. A formação (com vários níveis de profundidade estratégica e técnica) deve ser uma das principais pedras de toque do desenvolvimento transversal da acessibilidade digital na empresa e é muito importante que chegue a todos os departamentos sem excepção.
Todos na empresa terão um papel fundamental nesta transformação. Todos, sem excepção, podem e devem contribuir para a construção de produtos e serviços digitais verdadeiramente acessíveis, com um impacto muito significativo na vida de todas as pessoas que com a marca se relacionam todos os dias.